Braz Costa, Diretor Geral do
Citeve, defende que os têxteis técnicos precisam de engenheiros que incorporem
tecnologia numa indústria que está a mudar a grande velocidade
Num momento em que a indústria
têxtil considerou 2016 o seu “ano de ouro”, ao atingir um recorde de 7,3 mil
milhões de euros de volume de negócios, há que dar atenção a uma especialidade
que está a ganhar cada vez mais espaço no setor: a dos têxteis técnicos.
Atualmente, este segmento que exige grande incorporação de tecnologia, valerá
entre 25 a 30% do total (cerca de dois mil milhões de euros), apresentando
grande potencial de crescimento. Está presente sobretudo na indústria
automóvel, no desporto e na proteção individual, e a ATP – Associação Têxtil e
Vestuário de Portugal estima que, este ano, cresça até aos 40%.
Itália, Alemanha e França são
os grandes protagonistas numa área onde a Europa (ainda) lidera. Mas cuidado
com a China. Portugal não se tem saído nada mal, mas quer fazer ainda melhor.
Esta semana, o Citeve – Centro
Tecnológico Têxtil e Vestuário reuniu, durante dois dias, em Matosinhos vários
oradores estrangeiros e portugueses que falaram do potencial dos têxteis de
alta tecnicidade para uma audiência de 600 empresários, e muitos jovens. Foi a
iTechStyle, a primeira conferência Internacional realizada em Portugal, algo
que se pretende repetir.
A VISÃO aproveitou e
entrevistou Braz Costa, o diretor-geral do Citeve, um engenheiro mecânico que
iniciou carreira na indústria automóvel, passou pelas tecnologias da
informação, robótica e eletrônica, e acabou por deixar tudo para abraçar “os
trapos”. O Citeve é uma associação de 650 empresas, que vive do que fatura e
dos serviços que presta, sem qualquer outro financiamento. “Temos participado
em projetos, muito interessantes, assentes numa relação de confiança, rigor e
confidencialidade. Como trabalhamos com empresas que concorrem entre si, temos
de ter um sistema à prova de bala para que não haja transvase de informação de
umas empresas para as outras”, diz Braz Costa, também presidente da Associação
dos Centros Tecnológicos Têxteis da Europa.
O que é isso dos têxteis
técnicos de que tanto se fala?
Chama-se técnicos, ou de alta
tecnicidade, aos têxteis aplicados noutras industrias: automóvel, aeronáutica,
produção energética, etc. Mas no vestuário, também há têxteis de elevada
tecnicidade: desporto, proteção individual, bombeiros, defesa... E há outras
aplicações de menor dimensão, por exemplo na medicina (vestuário com fins
terapêuticos) e um conjunto de dispositivos médicos que se faziam, até há muito
pouco tempo, noutros materiais e, por uma questão de leveza, cada vez mais são
feitos com materiais têxteis. Antes, um pé partido era protegido com gesso e
hoje cada vez mais é substituído por materiais de base têxtil que lhe confere a
mesma resistência com um peso menor. Exatamente como nos aviões e nos
automóveis.
Qual a maior fatia em
Portugal?
Os grandes negócios com
têxteis de elevada tecnicidade são o desporto, a proteção individual e o
automóvel. No automóvel tem havido um crescimento muito grande, nalguns casos
com crescimentos estonteantes e fora de normal. Não são só estofos ou painéis,
mas tabliers completos! E vai caminhar nesse sentido.
Fala-se muito na fibra de
carbono...
Não só. A fibra de carbono tem
uma resistência, de facto, muito elevada, mas é energeticamente muito
dispendiosa. Há muita investigação (o Citeve está com projetos de grande
dimensão), para conseguir o mesmo com fibras mais baratas. Temos, neste
momento, várias linhas de investigação muito interessantes, liderando processos
europeus, de desenvolvimento de fibras que se comportam como elementos eletrônicos
ou para tratamento de superfícies e revestimentos com essas funções.
Isso é investigação
portuguesa?
Nunca podemos dizer que a
investigação é feita apenas num país, porque há cada vez mais interação. Temos
celebrado acordos e projetos em parceria com universidades e centros tecnológicos
europeus. Mas ao mesmo tempo temos vindo a fazer especialização em áreas que
nos permite até estar à frente dessas referências europeias. Nunca podemos
esquecer que a Alemanha é o segundo maior país têxtil da Europa! A ideia que
passa é que a Alemanha não faz têxteis. É a maior mentira, pois tem uma
atividade têxtil muito intensa.
E a China?
A China não pode ser mais
encarada como um concorrente apenas nos têxteis básicos. É um país muito
grande, com muita gente a estudar engenharia têxtil e, na investigação, a
escala é muito importante. Debaixo do negócio de produtos de baixo custo, há um
trabalho de anos da China para criar competências e liderar projetos de
inovação. Conseguem ultrapassar a Europa? Depende do que andarem e nós não
andarmos. Certo é que não poderemos, nunca, abrandar o passo. Porque perante
concorrentes com o passo tão acelerado, seria andar para trás. Por isso temos
uma obrigação e uma responsabilidade grande.
“A NECESSIDADE FOI O MAIOR
INCENTIVO”
Sendo o têxtil uma indústria tradicional,
antiga, está a conseguir fazer a viragem para esse grau de sofisticação?
Está, por necessidade. Na
semana passada decorreu em Munique a maior feira de material para desporto,
onde também figurava têxtil e vestuário. Havia mais expositores asiáticos que
europeus. Associado há um concurso de inovação de materiais têxteis. E Portugal
trouxe 16% dos prémios. Estamos muito bem conceituados nesta área e isso só nos
pode encher de orgulho e determinação. Há 15 anos, isto não existia. É uma
evolução recente, que resultou da necessidade
Só necessidade? Ou também a
entrada de uma nova geração, mais qualificada?
Tudo contribui para encontrar
novos mercados e novas formas de fazer negócio. Mas a necessidade foi o maior
incentivo. As empresas sentiram-se obrigadas a procurar outras soluções, outro
tipo de produto. Mas não podemos desacelerar, porque senão vamos ficar para
trás, pois todos estão á procura do seu espaço e os países emergentes têm
estratégias muito bem pensadas. Há países com políticas muito ativas para
financiar investimento e a formação das empresas.
Isso é um problema em
Portugal?
É. Nós não temos gente. A
entrada de gente nova tem muita influência, não só na nova geração de
empresários, mas também na nova geração de técnicos. Hoje chega-se ao mercado
de trabalho com uma formação muito mais longa. Já não estamos a falar de um
setor que recebia miúdas com o 6º ano de escolaridade. Estamos a falar de
pessoas com um certo nível de formação, que chegue às empresas e sejam atrizes
do movimento de evolução. Há vinte anos precisávamos de pessoas para repetir
tarefas. Hoje essas pessoas não têm enquadramento no nosso setor. Porque aquilo
que se faz hoje, amanhã vai ser diferente e no dia seguinte também. É preciso
ter uma capacidade de entendimento dos mercados, da tecnologia, dos produtos e
das tendências, para reagir e adaptar continuamente a maneira como se trabalha
aquilo que o mercado pede.
“QUEM TRABALHA AO BALCÃO DE
UMA LOJA GANHA MENOS”
Têm conseguido atrair pessoas
da engenharia?
Esse é o grande problema. Ao
contrário do que a realidade demonstra, a percepção que existe é que este é um
setor chato, de baixo valor, de baixos salários, de trabalho monocórdico e
repetitivo. Acontece que cada vez mais – e isto está a evoluir a passos muito
largos – o setor precisa de pessoas completamente diferentes, com uma grande
capacidade de aprender e de reproduzir o que aprende. Não temos jovens a
quererem ser engenheiros têxteis. E mesmo os que fazem cursos de química,
física ou mecânica hesitam muito em entrar neste setor.
Porquê?
Porque o setor tem má imagem.
Se calhar, porque os ordenados
são baixos.
Isso não é mais verdade. É
verdade que há pessoas a ganhar o ordenado mínimo, não há muitas, mas há. Só
que a percentagem já não é assim tão elevada. Há setores mais sexy, onde a
percentagem é muito maior.
Quais?
Os que trabalham ao balcão de
uma loja, por exemplo. É muito fashion, muito giro, estar a vender roupa
ao balcão, mas serão mais mal pagas do que as que trabalham na produção.
Mas há gente a ganhar o
ordenado mínimo.
A média é baixa e a evolução
do valor acrescentado (com menos empresas, menos pessoas, estamos a produzir e
a exportar mais) não acompanha o crescimento do volume de negócios. A questão
social é importante e o têxtil e vestuário salvam empregos em qualquer parte do
mundo. Há países sem tradição têxtil a fazer fortes investimentos para a
atração de empresas estrangeiras porque necessitam de criar emprego. No nosso
caso, estamos preocupados em continuar a gerar e incorporar mais valor. Mas
temos de aprender a vender melhor. Apesar de fazermos o desenvolvimento, as
coleções, o design, tudo uma grande parte do valor acrescentado fica nas
cadeias de distribuição ou nos intermediários que compram cá para venderem a
quem distribui.
Como é que podemos alterar
isso?
Da mesma maneira que
modificamos os processos industriais e a parte da cadeia de valor em que
atuamos. Tivemos a necessidade, mais uma vez, de desenvolvermos o produto
completo para assegurar as grandes cadeias de distribuição. Hoje, somos nós que
lhes propomos os modelos e lhes entregamos o produto acabado.
“FALTA-NOS VENDER POR MELHOR
PREÇO”
Nos têxteis técnicos é exigido
um nível de investimento muito superior ao resto do setor. Ou não?
Depende. Às vezes para
produzir uma simples tshirt é preciso ter tecnologias muito avançadas.
E temos?
Claro. Temos um cluster completo.
Nós temos empresas que fazem tecelagem, fiação, tricotagem, confecção e com
muito boa capacidade nos acabamentos. E a confecção pode parecer tudo a mesma
coisa, mas mudar de material pode ser um grande desafio. Trabalhar com
materiais mais elásticos ou mais rígidos faz toda a diferença. Mais: há cada
vez mais empresas chamadas a colaborar com os fabricantes de equipamentos. E
isso significa a valorização.
O Citeve tem sido muito
procurado?
O Citeve é o único centro
tecnológico em Portugal. A Alemanha tem 16! Damos uma resposta eclética, desde
as matérias primas até às tecnologias das lojas e dos pontos de venda. Temos
tido a capacidade de perceber a mentalidade empresarial. A dificuldade em lidar
diretamente com uma universidade tem a ver com uma abrupta diferença na forma
de pensar o que se está a fazer. Compreender que as janelas de tempo numa
empresa não são iguais às de um laboratório de investigação. O Citeve tem
pegado em gente de mestrado e doutoramento, e tenta aculturá-los para que se
sintam à vontade para lidar com o mindset industrial. E à cabeça de
tudo estão os prazos. Este é um desafio, criar condições para ter os melhores,
mas que estes entendam como funciona a indústria.
Em jeito de balanço,
falta-nos...
Falta-nos conseguir vender por
melhor preço. Este é mesmo um desafio. Não sei se tem ideia, mas normalmente
uma peça chega à loja no mínimo quatro vezes mais cara do que saiu da fábrica.
No mínimo! Outras são colocadas à venda por um preço dez vezes superior.
Mas se sair da fábrica com um
preço mais alto não vai chegar à loja ainda mais caro?
Certo, mas se há gente para
comprar por um preço ainda mais alto significa que esse valor acrescentado
poderia ter uma percentagem mais interessante para nós, portugueses. Este é que
é o desafio.
“PORTUGAL FEZ UMA GRANDE
APOSTA EM CIÊNCIA, MAS ESQUECEU-SE DA TECNOLOGIA”
Em termos de políticas públicas
o que nos falta?
Havia um deficiente apoio ao
desenvolvimento de tecnologia industrial, mais próximo das empresas. Portugal
fez um caminho invejável nas últimas duas décadas, de valorização e
financiamento da ciência. Temos hoje centros excelentes de investigação, que
encontraram formulas de terem a sua atividade financiada pelo Estado. Mas o
Estado nunca teve um programa para financiar a atividade de quem se coloca mais
perto das empresas. Sabemos, no entanto, que mais lá para o fim do mês será anunciada
uma nova família de políticas públicas orientadas para as interfaces [entre
universidades e empresas]. Portugal fez uma grande aposta em ciência e
esqueceu-se de fazer uma aposta em tecnologia. E agora percebeu que uma coisa
sem a outra levou a uma situação estranha: temos um sistema cientifico de
grande valor, sem que o resultado chegue às empresas.
O que vai mudar?
Vai haver um programa
diferente que incorpora toda a ciência e toda a tecnologia num sistema de
inovação, em paridade, assumindo que as diferenças são as complementaridades
que nos interessam. Cada um tem a sua missão. As universidades têm um papel
muito importante, mas não são as organizações certas para implementar
tecnologia nas empresas. Não são, porque os investigadores são professores.
Quais são as certas?
Os centros tecnológicos e de
engenharia e os investigadores de novas tecnologias.
“É UMA MISSÃO PÚBLICA
FINANCIAR TUDO O QUE É PRÉCOMPETITIVO”.
E onde se deve apostar?
Espero que esta nova política
seja muito exigente e que essa exigência vá ao nível da avaliação concreta dos
resultados. O governo, como representante dos cidadãos, tem de garantir que o
dinheiro está a ser bem gasto. Temos todo o interesse nisso e quanto maior for
a exigência melhor para nós. É uma missão pública financiar tudo o que é pré-competitivo.
As empresas não podem transferir tecnologia do nada. Têm de a transferir a
partir do sitio onde ela exista. E não pode ser aquela que já está disponível
em todos os países, nomeadamente na China. Isso não nos dá nenhuma vantagem
comparativa. Temos de apostar nas nossas linhas de investigação para, em
antecipação, conseguir pôr coisas no mercado e daí retirar valor acrescentado.
Ainda temos fracos gestores?
Teremos alguns. Mas certamente
temos hoje muito melhores gestores do que antes. Há uma geração com uma cultura
e uma propensão industrial que a anterior não teve. Há uma geração de 35, 40
anos, que está a chegar ao topo das empresas, e que, por incrível que pareça,
recuperam o entusiasmo dos seus avós, que, nalguns casos, sofreram para criar
verdadeiros impérios. E é importante, porque são pessoas que têm muito mundo...
Nervo e ambição?
E gosto. E isso vai motivar
aqueles que, não sendo donos, empurram o negócio. Quem lida com os clientes são
pessoas muito jovens. Antes, quando vinha um comprador, era sempre recebido
pelo dono ou presidente da empresa, havia sempre um programa social, com umas
almoçaradas. O mundo já não é assim. Agora vêm pessoas com piercings e
cabelo azul para decidir as compras. As empresas têm de ter também do lado de
cá quem entenda este mundo, quem melhor interprete o consumo e as tendências.
Fonte: Visão